A era do blogs reinventa as migrações
Segundo o poeta Alberto da Cunha Melo (1942-2007), no Canto dos Emigrantes, “para dentro de si/ou para todos, para sempre/todos emigram”. Movimento comum a várias espécies, esses deslocamentos entre os seres humanos ocorrem tanto por fatores socioeconômicos e políticos, como por questões ambientais e até afetivas. Tão antiga quanto contemporânea, a migração carrega consigo sentimentos, os quais, aos poucos ou de uma só vez, despeja sobre os ombros daquele que deixa seu lugar de origem. Saudade, estranhamento, entusiasmo, pertencimento, frustração são alguns deles.
Antes, cartas e diários davam conta da vida de quem se mudava para longe de sua terra. Em geral, esses documentos da vida privada interessavam somente ao destinatário, aos familiares e, quando muito, a amigos, salvo se o remetente fosse alguém ilustre. É o caso, por exemplo, da correspondência da escritora ucraniana-brasileira Clarice Lispector nos anos que passou fora do Brasil.
Hoje em dia, nos tempos da rede mundial, o migrante conta com ferramentas de aproximação seja com o lugar e as pessoas que deixou para trás, seja com o lugar e as pessoas que o receberam. Nessa viagem, um dos instrumentos de maior popularidade é o blog, quase uma bússola virtual, que pode indicar de onde o sujeito veio, onde ele está, para onde vai.
Sherazade
Patrícia Amorim, mestre em administração hospitalar, diz que sua primeira intenção ao criar o blog Uma Brasileira nas Arábias foi contar histórias sobre o lugar no qual vive há dois anos, Bahrein, um pequeno país situado no Golfo Pérsico. “Tudo para mim era tão novo e exótico! A cultura no mundo árabe é muito peculiar e fiquei pensando: ‘Poxa, se tivesse lido um blog antes de vir para cá, talvez tudo fosse mais fácil no início’. Pensava também que eu pouco sabia sobre a cultura árabe quando cheguei e ficava me perguntando o porquê de não aprendermos quase nada sobre ela na escola…”. Outro motivo que fez Patrícia criar o blog foi tentar mostrar às pessoas que o Oriente Médio não é somente um lugar de guerras. “Árabes são hospitaleiros e alegres. Amo viver aqui e fui muito bem-recebida. Isso acabou me aproximando ainda mais da minha família, pois eles ficavam curiosos em saber como era meu dia-a-dia no Bahrein.”
Patrícia, que saiu com a família do Brasil depois de um assalto sofrido nas ruas do Rio de Janeiro, dá uma dimensão da importância do blog para migrantes de todo o mundo. “Não consigo imaginar como seria minha vida se a internet não fosse tão disponível. É graças a ela que consigo me comunicar com minha família e diminuir a saudade. É por meio dela também que me relaciono com outras pessoas.” Ela diz conhecer blogueiros dos cinco continentes. “Muitas vezes estão longe geograficamente, mas tão presentes em minha vida. É engraçado pensar que tenho amigos que jamais conheci pessoalmente, mas cuja simpatia despertada na internet foi imediata. Correspondo-me com alguns deles com certa freqüência, falamos pelo Messenger usando webcams… É uma amizade com menos cobrança, mais livre e descompromissada.”
Fortalecendo laços
A paulista de Boituva Paula Mazulquim se considera uma migrante desde criança. Movida pelo espírito de aventura e pela curiosidade, esta jornalista já morou por períodos curtos em lugares como Florença (Itália), Brighton (Inglaterra) e Chicago (Estados Unidos). Há dois anos no Canadá, ela quis provar a si mesma que dava conta do desafio de viver em outro lugar e em outra cultura. “Não queria chegar aos meus 60 anos e ficar lastimando não ter nem ao menos tentado fazer o que sempre sonhei e ir embora deste planeta sem viver tudo que estou vivendo hoje”, diz.
Dona do blog A Era do Gelo, Paula se surpreendeu com o volume de acessos e correspondência de pessoas de todos os cantos do Brasil interessadas em acompanhar sua saga no Canadá. “O blog é uma ferramenta que ajuda outras pessoas a se informar sobre imigrar, embora eu sempre deixe claro nos meus textos que se trata de um relato muito pessoal do que estou vivendo e da maneira como estou enxergando tudo. Funciona também como instrumento de reflexão sobre a minha condição de imigrante. Como outras pessoas compartilham os mesmos desafios, muitas vezes os relatos acabam virando um desabafo também.”
Para ter uma ideia do poder de inserção social que blogs e afins têm para aquele que migra, todos os amigos que Paula fez no Canadá, sem exceção, vieram por meio do seu site pessoal. Ora, o pertencimento a uma comunidade é, sem dúvida, um dos pontos mais críticos na vida de um migrante. Quem não consegue se inserir profissional ou socialmente no lugar para o qual migrou dificilmente poderá aproveitar o que de melhor essa nova paisagem tem a oferecer.
Cidadão do mundo
Filho de uma família que fugiu da radicalização política em seu país, José Paulo Moreira, assessor de uma empresa do ramo da agroindústria, moçambicano de nacionalidade portuguesa e radicado no Brasil desde os 14 anos, diz ter dúvidas a respeito de sua nacionalidade. “Pela minha experiência, acho que somos, ou deveríamos ser, antes de tudo, cidadãos do mundo. Em seguida, aceitar a possibilidade de ter preferência por uma ou outra praia, um ou outro lugar.” Assim, Moreira faz do blog Lanterna Acesa um espaço de interação com o mundo, com a primeira pátria política, Portugal; com a pátria-mãe, Moçambique; e com a pátria por adoção, Brasil.
Moreira fez sua grande navegação particular muito antes do crescimento da internet, e sentiu o impacto, para um migrante, da vida em rede. “Lembro quando cheguei ao Brasil em 1975, 30 dias depois de uma viagem em um navio cargueiro, quando via, ainda, algumas imagens na TV das terras moçambicanas. Via aquelas cenas e o que relatavam, e não conseguia entender o motivo da deturpação dos fatos. Depois, perdi o contato com muita gente amiga, inclusive a família. Com a chegada da internet, mais acessível à gente comum, foi como se pudesse conviver com o passado, reaprender sobre ele, entendê-lo melhor e ter a chance de ver o presente que estava distante até então.” O assessor relembra a primeira vez que entrou num fórum de luso-moçambicanos e moçambicanos: “Reconheceram-me como o filho do fulano de tal. Foi um impacto emocional tremendo”. Para ele, a internet, além de diminuir os espaços, aproxima as pessoas fisicamente e, muitas vezes, emocionalmente. “Se isso acontece entre pessoas, de forma micro, é porque ela pode realmente unir os povos de uma forma mais abrangente. A rede precisa ser mais democratizada, distribuída e disponibilizada para a população mundial”, acredita.
Retorno às origens
Em 1969, os pais de Mary Pereira deixaram sua aldeia em Portugal e partiram rumo aos Estados Unidos. Em Boston, cidade americana em que foram morar, fundaram clubes de migrantes, ranchos folclóricos e escolas portuguesas que permitiram sua integração num país de realidade totalmente diversa. Essas instituições ajudaram os migrantes portugueses a fortalecer os laços sociais e afetivos com sua terra natal. Nascida em Boston e criada num bairro de migrantes portugueses, lituanos, italianos, sírios e poloneses, Mary, que é técnica em gestão e enfermagem, cresceu sob o signo da tolerância e da dupla cidadania afetiva.
E foi o afeto que fez a dona do blog A Saloia, 31 anos depois, decidir morar na terra dos seus pais e avós. Casada com um português, Mary faz da sua página um resgate da alma portuguesa que há tempos a habita. “Comecei a escrever o blog por achar que era uma maneira de minha família e amigos saber o que se passava comigo, já que não era hábito escrever cartas por correio. Mas também achava que era uma maneira de documentar a vida que tenho em Portugal e mostrar algo que já existia em mim.” Mary revela sua forte ligação com a aldeia da avó, onde sente que está “em casa”, mais do que em Boston ou em Sintra. “Por isso, sim, esse blog ainda é um work in progress. Falta descobrir mais. Uma descoberta que levará uma vida inteira.”
Ao escrever quase sempre em português, para uma maioria de leitores portugueses, Mary usa o blog como instrumento de pertencimento ao país no qual vive agora. Ela resume bem o espírito de quem migra: “Pertencer a um lugar é ter uma ligação humana com ele. Família nova, amigos novos, são essas as ligações que nos fazem sentir que fazemos parte de algo”.
Pequeno roteiro de blogs e sites pelo mundo dos imigrantes
Síndrome de Estocolmo – Blog da pernambucana Denise Arcoverde, que migrou de Serra Talhada para Olinda, em seguida para a Suécia, depois para os Estados Unidos e, recentemente, para a Coréia.
I @ Big Apple – Blog da designer paulistana de alma pernambucana Mônica Mello, residente nos Estados Unidos.
Mind this gap – Blog que publica histórias de jovens portugueses que migram para outros países em busca de trabalho.
Carta da Itália – O país europeu pelo olhar do brasileiro Allan Robert.
Sair do Brasil – Dicas e reportagens para os imigrantes brasileiros em potencial
Texto produzido pelo site www.itaucultural.org.br
Por Micheliny Verunschk
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